Autor: John Law
Tradução:
Fernando Manso
Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de John Law
para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos
os direitos preservados.
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reproduction, in Brazilian Portuguese, of John Law’s original text for study
purposes. No pecuniary advantagens involved.
Copyrights preserved.
Este artigo descreve a teoria ator-rede,
um corpo de escritos teóricos e empíricos que trata das relações sociais,
incluindo poder e organização, como efeitos de redes. A teoria é distintiva
porque ela insiste que as redes são materialmente heterogêneas e argumenta que
não existiria sociedade e nem organização se essas fossem simplesmente sociais.
Agentes, textos, dispositivos, arquiteturas são todos gerados nas redes do
social, são partes delas, e são essenciais a elas. E, num primeiro momento,
tudo deveria ser analisado nos mesmos termos. Segundo esta visão, a tarefa da
sociologia é caracterizar as formas pelas quais os materiais se juntam para se
gerarem e para reproduzirem os padrões institucionais e organizacionais nas
redes do social.
Palavras Chaves: teoria
ator- rede; tradução; heterogeneidade; agenciamento; tecnologia; estratégia;
ordenamento; pontualização; poder; materialismo
1. Introdução
Ocasionalmente nós nos vemos assistindo a
ordens ruírem. Organizações ou sistemas que sempre assumimos como estáveis – a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou a Illinois Continental -
desaparecem. Comissários, magnatas e capitães da indústria desaparecem da
vista. Esses perigosos momentos oferecem mais do que uma esperança política.
Porque quando os alçapões escondidos da mola social se abrem, nós, de repente,
descobrimos que os mestres do universo podem também ter os pés de barro.
Como é então que isso nunca nos pareceu
diferente? Como é então que, pelo menos por uma vez, eles se constituíram
diferentes de nós? Por quais meios organizacionais eles se mantiveram em seus
lugares e conseguiram superar as resistências que os teriam destronado muito
mais cedo? Como foi que nós participamos desta conspiração? Essas são
algumas das questões chaves da ciência social. E são essas as questões que
residem no núcleo da “teoria ator-rede[1]”,
a abordagem sociológica que é o tópico deste artigo. Esta teoria - também
conhecida como sociologia da tradução – trata da mecânica do poder. Ela
sugere que deveríamos analisar os poderosos exatamente da mesma forma que
quaisquer outros. Isto não significa negar que os marajás deste mundo são
poderosos. Eles certamente o são. Mas significa sugerir que eles,
sociologicamente, não são diferentes em espécie dos miseráveis.
Segue-se o argumento. Se nós queremos
entender a mecânica do poder e da organização, é importante não começar assumindo
o que queremos explicar. Por exemplo, é uma boa idéia não assumir que há um
sistema macro-social, por um lado, e detalhes micro-sociais derivados, pelo
outro lado. Se fizermos isso, estaremos retirando da cena as questões mais
interessantes sobre as origens do poder e da organização. Ao invés
disso, nós deveríamos começar com um quadro limpo. Por exemplo, podemos começar
com interação e assumir que interação é tudo o que há. Podemos então perguntar
como é que alguns tipos de interação conseguem se estabilizar mais, outras
menos, e se reproduzir. Como é que elas conseguem superar as resistências e
parecem se tornar “macro-sociais”. Como é que elas parecem produzir efeitos
tais como poder, fama, tamanho, escopo ou organização, com os quais somos
familiares. Este é um dos pressupostos centrais da teoria ator-rede: Napoleões
não são diferentes em espécie de “hustlers” insignificantes, nem IBMs de
“whelk-stalls”. E se eles são maiores, então deveríamos estar estudando como
isso veio a acontecer – em outras palavras, como tamanho, poder e
organização são gerados.
Nesta nota, eu começo por explorar a
metáfora da rede heterogênea. Isso reside no núcleo da teoria ator-rede,
e é uma forma de sugerir que a sociedade, as organizações, os agentes, e as
máquinas, são todos efeitos gerados em redes de certos padrões de
diversos materiais, não apenas humanos. Em seguida, eu considero a consolidação
da rede, e em particular, por que é que as redes podem vir a parecer atores
pontuais: dito de uma outra forma, por que é que podemos algumas vezes falar do
“Governo Britânico” em vez de todas as peças que o constituem. Em seguida,
examino o caráter de ordenamento da rede e argumento que isto é visto melhor
como um verbo – um processo, algo incerto, de superar resistências – do que
como o fait accompli de um nome. Finalmente, eu discuto os materiais e
estratégias do ordenamento da rede, e descrevo alguns achados
organizacionalmente relevantes da teoria ator-rede. Em particular, eu considero
algumas das formas pelas quais o ordenamento da rede, segundo certos padrões,
gera efeitos institucionais e organizacionais, incluindo hierarquia e poder.
2. A Sociedade como uma Rede Heterogênea
Os autores da teoria ator-rede começaram
na sociologia da ciência e da tecnologia, e juntamente com outros na sociologia
da ciência, eles argumentavam que o conhecimento é um produto social , e
não algo produzido através da operação de um método científico privilegiado. Em
particular, eles argumentavam que o “conhecimento” (mas eles generalizam de
conhecimento para agentes, instituições sociais, máquinas e organizações) pode
ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos.
Eu coloquei “conhecimento” entre aspas
porque o conhecimento sempre assume formas materiais. Ele aparece como uma
fala, ou como uma apresentação numa conferência; ou ele aparece em artigos,
livros, patentes. Ou ainda, ele aparece na forma de habilidades incorporadas em
cientistas e técnicos (Latour e Woolgar, 1979). O “conhecimento”, portanto, é
corporificado em várias formas materiais. Mas de onde ele vem? A resposta da
teoria ator-rede é que ele é o produto final de muito trabalho no qual
elementos heterogêneos – tubos de ensaio, reagentes, organismos, mãos
habilidosas, microscópios eletrônicos, monitores de radiação, outros
cientistas, artigos, terminais de computador, e tudo o mais – os quais
gostariam de ir-se embora por suas próprias contas, são justapostos numa rede
que supera suas resistências. Em resumo, o conhecimento é uma questão material,
mas é também uma questão de organizar e ordenar esses materiais. Este então é o
diagnóstico da ciência, na visão ator-rede: um processo de “engenharia
heterogênea” no qual elementos do social, do técnico, do conceitual, e do
textual são justapostos e então convertidos (ou “traduzidos”) para um conjunto
de produtos científicos, igualmente heterogêneos.
Isto é o que podemos dizer sobre a
ciência. Mas eu já sugeri que a ciência não é muito especial. Assim o que é
verdadeiro para a ciência é também verdadeiro para outras instituições. A
família, as organizações, sistemas de computador, a economia, tecnologias –
toda a vida social – podem ser similarmente descritas. Todos esses são redes
ordenadas de materiais heterogêneos cujas resistências foram superadas. Este
então é o movimento analítico crucial feito pelos autores da teoria ator-rede:
a sugestão que o social não é nada mais do que redes de certos padrões de
materiais heterogêneos.
Este é um argumento radical porque ele diz
que essas redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas,
animais, textos, dinheiro, arquiteturas – enfim quaisquer materiais. Portanto o
argumento é que o que compõe o social não é simplesmente humano. O social é
composto por todos esses materiais também. Na verdade, o argumento é que nós
não teríamos uma sociedade, de modo algum, se não fosse pela heterogeneidade
das redes do social. Portanto, nesta visão, a tarefa da sociologia é
caracterizar estas redes em sua heterogeneidade, e explorar como é que elas são
ordenadas segundo padrões para gerar efeitos tais como organizações,
desigualdades e poder.
Olhe para o mundo material desta forma.
Não se trata apenas de que nós comemos, achamos abrigo em nossas casas e
produzimos objetos com máquinas. Trata-se também de que quase todas nossas
interações com outras pessoas são mediadas através de objetos. Por
exemplo, eu falo a você através de um texto, muito embora provavelmente nunca
nos encontraremos. E para fazer isso, eu estou digitando num teclado de
computador. Nossas comunicações com os outros são mediadas por uma rede de
objetos – o computador, o papel, a imprensa. E é também mediada por redes de objetos-e-pessoas,
tal como o sistema postal. O argumento é que essas várias redes participam do
social. Elas o moldam. Em alguma medida, elas ajudam a superar a sua
relutância em ler meu texto. E (mais crucialmente) elas são necessárias para
o relacionamento social entre autor e leitor.
Vamos a um segundo exemplo. Eu estou de pé
num tablado. Os alunos me olham, por trás de fileiras de carteiras, com papéis
e canetas. Eles tomam notas. Eles podem me ver e me escutar. Mas eles também
podem ver as transparências que eu ponho no projetor. Portanto, o projetor,
assim como a forma da sala, participa da moldagem da nossa interação. Ele media
a nossa comunicação, e faz isso numa forma assimétrica, amplificando o que eu
digo sem dar aos estudantes muita chance de replicarem (Thompson, 1990). Num
outro mundo, isto poderia, obviamente, ser diferente. Os estudantes poderiam
invadir o tablado e assumir o controle do projetor. Ou poderiam, se eu desse
aulas mal, simplesmente me ignorar. Mas eles não fazem isso, e uma vez que não
o fazem, o projetor participa da nossa relação social: ele ajuda a definir o
relacionamento professor – aluno. Ele é uma parte do social. Ele opera
sobre eles para influenciar a forma pela qual eles agem.
Talvez seja apenas no fazer amor que haja
interação entre corpos humanos não mediados. - embora, mesmo aqui o
extra-somático também cumpra uma função. Mas o caso geral que é enfatizado pela
teoria ator-rede é esse: se os seres humanos formam uma rede social, isto não é
porque eles interagem com outros seres humanos. É porque eles interagem com
seres humanos e muitos outros materiais também. E, exatamente como seres
humanos têm suas preferências – eles preferem interagir de certas formas e não
de outras – esses outros materiais que compõem as redes heterogêneas do social
também têm suas preferências. Máquinas, arquiteturas, roupas, textos – todos
contribuem para o ordenamento do social. E – esse é o meu ponto – se esses
materiais desaparecessem também desapareceria o que às vezes chamamos de ordem
social. A teoria ator-rede diz, então, que ordem é um efeito gerado por
meios heterogêneos.
Nesse ponto abrem-se caminhos. Porque o
argumento sobre o ordenamento material do social pode ser tratado numa forma
reducionista. A versão reducionista diz que, em última análise, as relações
entre as máquinas ou as relações humanas são determinantes: que uma
determina a outra[2].
No entanto, embora esses reducionismos sejam diferentes, eles têm duas coisas
em comum. Primeiro, eles separam o humano do técnico. Segundo, eles assumem que
um determina o outro.
A teoria ator–rede não aceita este
reducionismo. Ela diz que não há razão para assumir, a priori , que objetos
ou pessoas determinem o caráter da mudança ou da estabilidade social, em
geral. Na verdade, em casos particulares, relações sociais podem moldar
máquinas, ou relações entre máquinas moldar seus correspondentes sociais. Mas
isso é uma questão empírica, e usualmente as questões são mais complexas.
Portanto, para usar uma frase de Langdon Winner (1980), os artefatos podem ter
política sim. Mas o caráter dessas políticas, quão determinada elas são, e
antes de tudo, se é possível separar pessoas e máquinas – essas são todas
questões contingenciais.
3. Agenciamento como Rede
Deixe-me ser claro. A teoria ator-rede é
analiticamente radical, em parte porque ela esbarra em algumas questões éticas,
epistemológicas e ontológicas. Em particular, ela não celebra a idéia de que
haja uma diferença em espécie entre pessoas de um lado e objetos do outro. Ela
nega que pessoas sejam necessariamente especiais. Na verdade ela levanta
uma questão básica sobre o que nós queremos dizer quando falamos de
pessoas. Necessariamente, portanto, ela incomoda o humanismo ético e
epistemológico. O que devemos fazer disso? Um ponto clarificador, e em seguida
um argumento.
O ponto clarificador é o seguinte. Nós
precisamos, eu acho, distinguir entre ética e sociologia. Uma pode – na verdade
deve - informar a outra, mas elas não são idênticas. Dizer que não há diferença
fundamental entre pessoas e objetos é uma atitude analítica, e não uma posição
ética. E dizer isso não significa que tenhamos de tratar as pessoas como
máquinas. Não temos que lhes negar os direitos, deveres e responsabilidades que
usualmente lhes atribuímos. Na verdade, nós podemos usar essa atitude para
aprofundar questões éticas sobre o caráter especial do efeito humano, como, por
exemplo, em casos difíceis tais como os de vida mantida artificialmente por
conta das tecnologias de tratamento intensivo.
Agora o ponto analítico. Pode ser feito de
diversas maneiras. Por exemplo, eu poderia argumentar (como fizeram sociólogos
tais como Woolgar, 1992 e psicólogos da tecnologia tais como Turkle, 1984) que
a linha divisória entre pessoas e máquinas (ou animais, a esse respeito) é
sujeita a negociação e mudanças. Assim, é facilmente mostrado que máquinas (e
animais) ganham e perdem atributos tais como independência, inteligência, e responsabilidade
pessoal. E, inversamente, que pessoas assumem e perdem atributos de máquinas e
animais.
No entanto, eu enfatizarei o argumento de
uma outra maneira dizendo que, analiticamente, o que conta como uma pessoa é um
efeito produzido por uma rede de materiais interativos e heterogêneos.
Trata-se do mesmo argumento que fiz a respeito do conhecimento científico e do
mundo social como um todo. Mas convertido a um argumento sobre humanos ele diz
que pessoas são o que são porque elas são uma rede ordenada segundo certos
padrões de materiais heterogêneos. Se você me tirar o computador, meus colegas,
meu escritório, meus livros, minha mesa de trabalho e meu telefone, eu não
seria um sociólogo que escreve artigos, ministra aulas e produz “conhecimento”.
Eu seria uma outra coisa, e o mesmo é verdade para todos nós. Portanto, a
questão analítica é essa. Um agente é um agente, primariamente, porque ele ou
ela habita um corpo que carrega conhecimentos, habilidades, valores e tudo o
mais? Ou um agente é um agente porque ele ou ela habita um conjunto de
elementos (incluindo obviamente um corpo) que se estende por uma rede de
materiais, somáticos e de outros tipos, que circundam cada corpo?
A resposta de Goffmam (1968) é que apoios
são importantes, mas a carreira moral do paciente mental não é redutível aos
apoios. A teoria ator-rede, assim como a interação simbólica (Star 1990a,
1992), oferece uma resposta similar. Ela não nega que os seres humanos
usualmente têm algo a ver com corpos (mas e o fantasma de Banquo, ou a sombra
de Karl Marx?). Nem ela nega que seres humanos, assim como os pacientes
descritos por Goffman, tenham uma vida interior. Mas ela insiste que agentes
sociais não estão nunca localizados em corpos e somente em corpos, mas que ao
contrário, um ator é uma rede de certos padrões de relações heterogêneas, ou um
efeito produzido por uma tal rede. O argumento é que pensar, agir, escrever,
amar, ganhar dinheiro – todos atributos que nós normalmente atribuímos aos
seres humanos, são produzidos em redes que passam através do corpo e se
ramificam tanto para dentro e como para além dele. Daí o termo ator-rede – um
ator é também, e sempre, uma rede.
O argumento pode ser facilmente
generalizado. Por exemplo, uma máquina é também uma rede heterogênea -
um conjunto de papéis desempenhados por materiais técnicos mas também por
componentes humanos tais como operadores, usuários, e mantenedores. Da mesma
forma um texto. Todas essas são redes que participam do social. E o mesmo é
verdade para organizações e instituições: essas são papéis, ordenados mais ou
menos precariamente segundo certos padrões, desempenhados por pessoas,
máquinas, textos, prédios, cada um dos quais pode oferecer resistência.
4. Pontualizações e “Resourcing”
Por que de vez em quando, mas apenas de
vez em quando, tomamos consciência das redes que estão por trás e que
constituem seja um ator, um objeto, ou uma instituição? Por exemplo, para a
maioria de nós, na maior parte do tempo, a televisão é um objeto singular e
coerente com relativamente poucas partes aparentes. No entanto quando ela deixa
de funcionar, rapidamente, ela se torna para esse mesmo usuário – e mais ainda
para o técnico de manutenção – uma rede de componentes eletrônicos e
intervenções humanas. Outro exemplo, para o pequeno comerciante, o Banco de
Crédito e Comércio Internacional era um local organizado e coerente para
se depositar e retirar dinheiro. Agora, no entanto, e mais ainda para os
investigadores da fraude, ele é uma complexa rede de transações questionáveis,
na verdade criminosas. Outro exemplo, para a pessoa saudável, a maior parte do
funcionamento do corpo está escondido, mesmo para a própria. No entanto, para
alguém doente e mais ainda para o médico, o corpo é convertido numa complexa
rede de processos e um conjunto de intervenções humanas, técnicas e
farmacêuticas.
Por que essas redes que constituem os
atores são apagadas ou escondidas da vista? E por que às vezes não o são?
Deixe-me começar com tautologia. Cada um dos exemplos acima sugere que o
aparecimento da unidade e o desaparecimento da rede tem a ver com simplificação.
O argumento é o seguinte. Todos fenômenos são o efeito ou o produto de redes
heterogêneas. Mas na prática nós não lidamos com essas intermináveis
ramificações. Na verdade, na maior parte do tempo, nós nem mesmo estamos em
posição de detectar as complexidades da rede. O que ocorre é o seguinte. Sempre
que uma rede age como um único bloco, então ela desaparece, sendo substituída
pela própria ação e pelo autor, aparentemente único desta ação. Ao mesmo tempo,
a forma pela qual o efeito é produzido é também apagada: nas
circunstâncias ela não é visível e nem relevante. Ocorre, então, que algo muito
mais simples surge – uma televisão (funcionando), um banco bem administrado, ou
um corpo saudável –, por um tempo, para cobrir as redes que o produziram.
Os teóricos das redes falam às vezes de
tais precários efeitos simplificadores como pontualizações , e eles
certamente indexam um importante aspecto das redes do social. Eu já havia dito
que eu refuto uma distinção analítica entre o macro e o microsocial. Também já
havia dito que alguns padrões de ordenamento de redes propagam-se mais ampla e
profundamente – que eles são muito mais geralmente performados que outros. Essa
é a conexão: redes cujos padrões de ordenamentos são mais amplamente
performados são aquelas que mais freqüentemente podem ser pontualizadas.
Isto é porque elas são redes empacotadas – rotinas -, as quais podem ser, mesmo
que precariamente, consideradas mais ou menos estáveis no processo da
engenharia heterogênea. Em outras palavras, elas podem ser tomadas como
recursos, recursos que podem surgir numa variedade de formas: agentes,
dispositivos, textos, conjuntos relativamente padronizados de relações
organizacionais, tecnologias sociais, protocolos de fronteira, formas
organizacionais,– qualquer um ou todos esses. Note que a engenharia heterogênea
não pode estar certa que todos funcionarão conforme previsto. A pontualização é
sempre precária, ela enfrenta resistência, e pode degenerar numa rede falha.
Por outro lado, recursos pontualizados oferecem uma forma de se utilizar
rapidamente das redes do social sem ter que se envolver com complexidades
intermináveis. E na medida em que esses recursos pontualizados estão
incorporados nos esforços de ordenamento, eles são então performados,
reproduzidos dentro das redes do social e ramificados através delas[3].
5. Tradução: O Ordenamento Social como um
Processo Precário
Eu tenho insistido que pontualização é um
processo ou um efeito, e não alguma coisa que possa ser obtida de uma vez por
todas. Dessa forma, a teoria ator-rede assume que a estrutura social não é um
nome, mas um verbo. A estrutura não é algo separado e independente como os
andaimes em torno de um prédio, mas um local de luta, um efeito relacional que
se gera recursivamente e se auto-reproduz[4].
A insistência no processo tem várias implicações. Implica, por exemplo, que
nenhuma versão da ordem social, nenhuma organização, nenhum agente chega a se
tornar completo, autônomo, final. Posto de outra forma, independentemente dos
sonhos dos ditadores e dos sociólogos normativos, não há uma coisa tal como “a
ordem social”, com um único centro, ou um conjunto único de relações estáveis.
Ao contrário, há ordens, no plural. E, obviamente, há resistências.
É preciso cuidado aqui, porque a teoria
não é pluralista no sentido usual do termo. Ela não diz que há muitos centros
de poder ou ordens, mais ou menos iguais. O que ela diz é que os efeitos de
poder são gerados numa forma relacional e distribuída, e que nada está nunca
completo. O que ela diz é que, para usar a linguagem da sociologia clássica, o
ordenamento (e seus efeitos incluindo poder) é contestável e freqüentemente
contestado. Assim, eu disse mais cedo que os humanos, assim com as máquinas,
têm suas próprias preferências. Isto foi uma maneira informal de falar da
resistência e do caráter polivalente do ordenamento - a forma pela qual
qualquer esforço de ordenamento encontra seus limites, e luta para aceitar ou
superar esses limites. Outra forma de dizer isso é notar que os elementos
reunidos pro tem numa ordem estão permanentemente sujeitos a falha, e a
abandonarem o conjunto por sua própria conta. Assim, a análise da luta pelo
ordenamento é central à teoria ator-rede. O objeto é explorar e descrever
processos locais de orquestração social, ordenamento segundo padrões, e
resistência. Em resumo, o objeto é explorar o processo freqüentemente chamado
de tradução o qual gera efeitos de ordenamento tais como dispositivos,
agentes, instituições ou organizações. Assim “tradução” é um verbo que implica
transformação e a possibilidade de equivalência, a possibilidade que uma coisa
(por exemplo, um ator) possa representar outra (por exemplo, uma rede).
Isto é o núcleo da abordagem ator-rede: um
interesse por como atores e organizações mobilizam, justapõem e mantêm unidos
os elementos que os constituem. Como atores e organizações algumas vezes
conseguem evitar que esses elementos sigam suas próprias inclinações e saiam. E
como eles conseguem, como um resultado, esconder por um certo tempo o próprio
processo de tradução e assim tornar uma rede de elementos heterogêneos cada
qual com suas inclinações em alguma coisa que passa por um ator pontualizado.
6. As Estratégias de Tradução
Como é o trabalho de todas as redes que
constituem o ator pontualizado, usurpado, subjugado, deslocado, distorcido,
reconstruído, remoldado, furtado, aproveitado, e/ou deturpado para gerar os
efeitos de agenciamento, organização e poder? Como são superadas as
resistências? Neste ponto, a teoria ator-rede se engaja com a questão que pus
no princípio: como é que nunca vimos antes que os Gorbachevs deste mundo
realmente têm os pés de barro todo o tempo. Porque a teoria ator-rede é sobre
poder, poder como um efeito (escondido ou deturpado), e não como um
conjunto de causas. Aqui a teoria é próxima a Foulcaut (1979), mas ela não é
simplesmente foulcadiana porque, evitando o sincronicidade, ela conta histórias
empíricas sobre processos de tradução. Na verdade, há mais do que uma alusão a
Maquiavel no método. O autor de O Príncipe é favoravelmente citado por
vários teóricos ator-rede pela sua análise implacável das táticas e estratégias
do poder.
Mas o que podemos dizer sobre a tradução e
os métodos para superar a resistência? A teoria ator-rede quase sempre aborda
suas tarefas empiricamente, e aqui não faremos uma exceção. Portanto, a
conclusão empírica é que traduções são contingentes, locais e variáveis. No
entanto, quatro achados mais gerais emergem:
1. O
primeiro tem a ver com o fato de que alguns materiais são mais duráveis do
que outros e portanto mantêm seus padrões relacionais por mais tempo. Imagine
um continuum. Pensamentos são baratos mas não duram muito tempo. Discursos
duram muito pouco mais. No entanto, quando começamos a performar relações
– e em particular quando nós as incorporamos em materiais inanimados
tais como textos ou prédios – elas podem durar mais tempo. Assim uma boa
estratégia de ordenamento é incorporar um conjunto de relações em materiais
duráveis. Consequentemente, uma rede relativamente estável é aquela incorporada
e performada por uma faixa de materiais duráveis.
O argumento é atraente, mas não é tão
simples como parece. Isto porque durabilidade é também um efeito relacional, e
não algo dado na natureza das coisas. Se os materiais se comportam de formas
duráveis, então isto é também um efeito interativo. As paredes podem resistir
às tentativas de fuga dos prisioneiros – mas apenas enquanto haja também
guardas na prisão. Dito de outra maneira, formas de material durável podem
achar outros usos: seus efeitos mudam quando elas são postas em novas
redes de relações. Concluindo, o argumento sobre durabilidade é atrativo e tem
muito mérito, mas precisa ser usado com cuidado.
2. Se
durabilidade é sobre o ordenamento no tempo, mobilidade é sobre o
ordenamento no espaço. Em particular, é sobre formas de agir a distância. E
dessa forma, centros e periferias também são efeitos; efeitos gerados por
vigilância e controle. A afinidade com Foucault é óbvia, mas a teoria ator-rede
aborda o assunto numa forma diferente. Em particular ela explora materiais e
processos de comunicação – a escrita, a comunicação eletrônica, métodos de
representação, sistemas bancários, e aparentes mundanidades como as rotas de
comércio dos primeiros tempos modernos. Em outras palavras, ela explora as
traduções que criam a possibilidade de transmitir o que Latour chamou de móveis
imutáveis – cartas de crédito, ordens militares ou balas de canhão.
Novamente, a ênfase é sobre os precários efeitos relacionais, mas com forte
ênfase histórica, em parte influenciada pelos estudos do tipo
“sistemas-construções” de historiadores da tecnologia tais como Hughes (1983),
e em parte pelos Anais da escola da história materialista com sua insistência
na “longue durée” (Braudel, 1975).
3. A
tradução é mais efetiva se ela antecipa as respostas e reações dos materiais a
serem traduzidos. Esta idéia não é nova – ela é, por exemplo, crucial para a
ciência política maquiavélica, e figura como um tema central na história dos
negócios (Chandler, 1977; Beniger, 1986) – embora os escritores ator-rede
resistam ao funcionalismo e ao determinismo tecnológico que tende a
caracterizar esta última. Ao contrário, eles tratam o que Latour chama de centros
de tradução como efeitos relacionais e exploram as condições e os materiais
que geram esses efeitos e superam as resistências que os dissolveriam. Seguindo
o trabalho de historiadores (e.g. Ivins, 1975; Eisenstein, 1980) e antropólogos
(Goody, 1977; Ong, 1982), eles consideram o relacionamento entre nível escolar,
burocracia, imprensa, o desenvolvimento do livro contábil, as mais novas
tecnologias eletrônicas, por um lado e a capacidade de prever resultados pelo
outro. O argumento é que sob as circunstâncias relacionais adequadas tais
inovações têm importantes conseqüências sobre o cálculo, o que por sua vez
aumenta a robustez da rede.
Note, novamente, a observação sobre as
circunstâncias relacionais. Como Weber bem entendeu, o cálculo não é um “deus
ex machina”. Ele é um conjunto de métodos ou relações sociais em si próprio.
Além disso ele só funciona sobre representações materiais – os produtos da
vigilância que também são efeitos relacionais. Assim, conforme indiquei,
sistemas de representação, de móveis imutáveis, também são precários. A
analogia com o problema da representação política é direto, porque, assim como
para qualquer outra forma de tradução, a representação é falível, e não pode
ser antecipado se um representante falará realmente em nome (e assim mascarará)
do que ele diz representar.
4.
Finalmente, há uma questão de escopo do ordenamento. Eu tenho enfatizado a
visão de que o escopo é local. No entanto, é possível levar-se em conta algumas
estratégias de tradução gerais, as quais, assim como os discursos
Foucaldianos, se ramificam através das redes e se reproduzem num conjunto de
instâncias ou locais das redes. Notem que se essas estratégias existem, elas
são mais ou menos implícitas, porque estratégias de cálculo explícitas só são
possíveis quando já há um centro de tradução.
O que pareceriam ser tais estratégias?
Novamente, isto é uma questão empírica. Mas desde que nenhum ordenamento chega
nunca se completar, nós podemos esperar uma série de estratégias que
coexistam e interajam. Isto é um argumento feito por vários escritores
ator-rede. Assim, num estudo recente sobre gestão, eu detectei um conjunto de
estratégias: “empreendimento”, “gestão”, “vocação”, e “visão” os quais operam
coletivamente para gerar agentes multi-estratégicos, arranjos organizacionais,
e transações inter organizacionais. Na verdade, o argumento é que uma
organização pode ser vista como um conjunto de tais estratégias, que operam
para gerar complexas configurações de durabilidade, mobilidade espacial,
sistemas de representação e calculabilidade – configurações que tem o efeito de
gerar as assimetrias centro-periferia e as hierarquias características das
organizações mais formais.
7. Conclusão
Nesta nota eu descrevi a teoria ator-rede
e sugeri que a teoria é uma sociologia relacional e orientada a processos a
qual trata agentes, organizações, e máquinas como efeitos interativos. Eu
comentei sobre algumas formas pelas quais tais efeitos são gerados, e enfatizei
sua heterogeneidade, sua incerteza, e seu caráter contestável. Argumentei, em
particular, que a estrutura social é melhor tratada como um verbo do que como
um nome.
Como é óbvio, a abordagem tem um número de
pontos comuns com outras sociologias. No entanto, seu materialismo
relacional é bem distinto. Obviamente, o materialismo não é novo na
sociologia. No entanto, o materialismo e as relações sociais não têm sido
sempre os mais felizes dos companheiros. Nas melhores sociologias tais como o
marxismo e o feminismo, eles têm interagido. Mas mesmo aí, o usual é tratá-los
como se eles fossem diferentes em espécie, como um dualismo em vez de uma
continuidade. No entanto, tendo em vista como a sociologia trata os dualismos,
a abordagem ator-rede se apresenta com um espírito radical, porque ela não
apenas apaga as divisões analíticas entre agenciamento e estrutura, e entre o
macro e o micro social, mas ela também propõe tratar diferentes materiais –
pessoas, máquinas, “idéias” e tudo o mais – como efeitos interativos e não como
causas primitivas. A abordagem ator-rede é assim uma teoria do agenciamento,
uma teoria do conhecimento, e uma teoria sobre máquinas. E, mais
importante, ela diz que se nós quisermos responder às questões “como” sobre
estrutura, poder e organização, deveremos explorar efeitos sociais, qualquer
que seja sua forma material. Este é o argumento básico: na medida em que a
“sociedade” se reproduz recursivamente, ela faz isso porque ela é materialmente
heterogênea. E sociologias que não levam máquinas e arquiteturas tão a sério
como as pessoas nunca resolverão o problema da reprodução.
O que tem a teoria ator rede a dizer sobre
a sociologia das organizações? Uma resposta é que ela define um conjunto de
questões para explorar a mecânica precária da organização. Eu disse
acima que essas questões surgem em várias formas. Assim, é conveniente
distinguir, por um lado, entre questões que têm a ver com os materiais da
organização, e pelo outro lado, questões que têm a ver com a estratégia da
organização. Assim, quando a teoria ator-rede explora o caráter de uma
organização, ela o trata como um efeito ou uma conseqüência – o efeito da
interação entre materiais e estratégias da organização.
Esses são, então, os tipos de questões que
a teoria pergunta às organizações e aos poderosos que as dirigem. Quais são os
tipos de elementos heterogêneos criados ou mobilizados e justapostos para gerar
os efeitos organizacionais? Como eles são justapostos? Como são superadas as
resistências? Como é, se for o caso, que a durabilidade material e a
transportabilidade necessárias ao ordenamento organizacional das relações
sociais são obtidos? Quais são as estratégias sendo performadas através das redes
do social como uma parte do próprio? Até onde vão essas redes? Quão amplamente
elas são performadas? Como elas interagem? Como é, se for o caso, que o cálculo
organizacional é tentado? Como, se for o caso, são os resultados dos cálculos
traduzidos em ação? Como, se for o caso, que os elementos heterogêneos que
compõem a organização geram um relacionamento assimétrico entre centro e
periferia? Como é, em outras palavras, que um centro pode vir a falar em nome
dos esforços do que se tornou uma periferia e lucrar com esses esforços? Como é
que um gerente gerencia?
Vista desta forma, organização é uma
conquista, um processo, uma conseqüência, um conjunto de resistências
superadas, um efeito precário. Seus componentes - as hierarquias, os arranjos
organizacionais, as relações de poder, e os fluxos de informação – são as
conseqüências incertas da ordenação dos materiais heterogêneos. Assim é que a
teoria ator-rede analisa e desmistifica. Ela desmistifica o poder e o poderoso.
Ela diz que, em última análise, não há diferença em espécie, não há grande
divisão alguma entre o poderoso e o miserável. Mas em seguida ela diz que não
há coisa tal como última análise. E uma vez que não há última análise, na
prática há diferenças reais entre os poderosos e os miseráveis, diferenças
nos métodos e materiais que eles empregam para se produzirem e reproduzirem.
Nossa tarefa é estudar esses materiais e métodos, para entender como eles se
realizam, e notar que poderia, e freqüentemente deveria, ser de outra maneira.
8. Agradecimentos
Eu não quis carregar o texto, e por isso
incluí poucas referências à teoria ator-rede no corpo da nota. (Citações serão
encontradas na nota de pé de página 1.) No entanto, a nota baseia-se num corpo
grande de trabalho (substancialmente empírico) feito por uma série de autores.
Eu sou grato a todos eles pelo seu suporte por mais de uma década.
Notas
[1] Esta teoria é o produto de um grupo de
sociólogos associados, e em vários casos, localizados no Centro de Sociologia
da Inovação da Escola Nacional Superior de Minas de Paris. Os autores
associados com esta abordagem incluem Akrich (1989 a, b, 1992), Bowker
(1988, 1992), Callon (1980, 1986, * 1987, 1991; Latour, 1981; Law and Rip,
1986), Cambrosio et al. (1990), Hennion (1985, 1989, 1990; Meadel, 1986, 1989),
Latour (1985, * 1986, 1987, * 19881, b, 1990, * 1991a, b, 1992a,
b), Law (1986a, * b, 1987, 1991a, b, 1992a, b;
Bijker, 1992; Callon, (1988, * 1992), Medeal (see Hennion and Meadel), Rip
(1986), and Star (1990b, 1991; * Griesener, 1989). Os itens
marcados com um asterisco podem ser particularmente úteis para aqueles não
familiares com a abordagem.
[2] O reducionismo maquinal é corrente no
determinismo tecnológico da teoria organizacional sociotécnica. O reducismo
humano é corrente em muitas sociologias – por exemplo na teoria do processo de
trabalho
[3] Este é um dos lugares onde a teoria
ator-rede se aproxima da sociologia das organizações; a afinidade entre este
argumento e a teoria do isomorfismo institucional é evidente.
[4] A este respeito ela é similar a várias
outras teorias sociais contemporâneas. Pense, por exemplo, na noção de
“estruturação” de Giddens (1984), na teoria da “figuração” de Elias (1978), ou
no conceito de “hábito” de Bourdieu (1989).