domingo, 9 de fevereiro de 2014

Jogando Juntos e Sozinhos

Em 2000 o cientista político norte-americano Robert Putnam publicou Bowling Alone (infelizmente até agora sem tradução para o português). Uma resenha sobre este livro está disponível neste blog em http://carloslopes1.blogspot.com.br/2012/08/bowling-alone-de-robert-putnam.html.

O título é uma metáfora para ilustrar o decréscimo do capital social nos Estados Unidos no último quarto do século 20 e seria  algo próximo à jogar futebol sozinho no Brasil.

Além da monumental quantidade de dados, Bowling Alone é rico em análises e interpretações tanto sobre as funções do capital social, sua associação com outras variáveis da vida social (saúde, educação, desigualdade, violência, etc.), assim como em estratégias para se incrementar os níveis de capital social. Segundo o Prof. Ladislau Dowbor da PUC-SP, este é um dos três livros necessários para se entender os Estados Unidos (O segundo livro para esse fim é Roosevelt e Hopkins de Robert E. Sherwood, Nova Fronteira e o terceiro eu não me lembro - assim que encontrar o Ladislau vou perguntar novamente e complemento a informação).

Já em Bowling Alone Putnam havia declarado que situações de crise, guerras ou catástrofes naturais poderiam ser catalisadores para a criação de situações capazes de incrementar os níveis de capital social. Logo após os ataques de 11 de setembro à Nova Iorque e Washington Putnam  empreende um levantamento de opinião sobre atitudes e comportamentos indicadores dos níveis de capital social.


O texto que traduzi para o português e apresento abaixo, revela que sinteticamente houve uma mudança nas atitudes, mas não nos comportamentos. Diferente da segunda guerra mundial, os americanos perderam a oportunidade de usar a crise para criar as bases para um aumento no capital social. 


Jogando Boliche Juntos*

*Publicado em The American Prospect 13, no. 3 (11 February 2002). Texto Original em: http://prospect.org/article/bowling-together-0

Autor: Robert Putnam
Ilustrações: Laurent Cilluffo
*Tradução: Carlos Lopes
* Livre reprodução para o português brasileiro do texto de Robert Putnam
 para fins de estudo  Não existe vantagem financeira
 e ficam preservados os direitos de cópia.


As últimas décadas do século XX encontraram os americanos cada vez menos conectados uns com os outros e com a vida coletiva. Nós votamos menos, nos juntamos menos, doamos menos, confiamos menos, investimos menos tempo nos assuntos públicos, e nos engajados menos com os nossos amigos, nossos vizinhos, e até mesmo com nossas famílias. O nosso "nós" seguramente ficou mais murcho.

A tragédia indescritível de 11 de setembro interrompeu drasticamente aquela tendência. Quase instantaneamente, redescobrimos os nossos amigos, nossos vizinhos, nossas instituições públicas, e nosso destino compartilhado. Quase dois anos atrás, eu escrevi no meu livro Bowling Alone, que restaurar o engajamento cívico na América "seria facilitada por uma crise nacional palpável, como uma guerra, depressão ou um desastre natural, mas, para o bem e para o mal, a América no início do novo século não enfrenta tais crises galvanizadoras".

Agora nós fizemos.

Mas o 11 de setembro é um período que coloca um ponto final a uma era e abre uma nova, com um capítulo com maior espírito comunitário em nossa história? Ou é apenas uma vírgula, uma breve pausa durante a qual olhamos para cima por um momento e depois voltamos para nossas atividades solitárias? Em suma, quanto completa e duradouramente os valores e hábitos cívicos da América foram transformado pelos ataques terroristas do outono passado?

Durante o verão e o outono de 2000, eu e meus colegas conduzimos uma pesquisa nacional sobre atitudes e comportamentos cívicos, perguntando sobre tudo, desde a votação até cantar em corais, de leitura de jornais à casamento inter-racial. Recentemente, voltamos a muitas das mesmas pessoas e propusemos as mesmas questões. Nossa pesquisa ocorreu de meados de outubro a meados de novembro de 2001, englobando a crise do anthrax e o início da guerra do Afeganistão. Emergindo do recente trauma da morte e destruição indescritíveis, esses 500 americanos estavam se ajustando a um mundo e uma nação diferentes.

Embora o efeito imediato dos ataques fosse claramente devastador, a vida pessoal da maioria dos americanos voltou ao normal de forma relativamente rápida. Por exemplo, apesar de relatos anedóticos do aumento da prática religiosa no rescaldo da tragédia, não encontramos nenhuma evidência de qualquer mudança na religiosidade ou na frequência à igreja. Nosso principal interesse, no entanto, não era com a mudança na vida privada dos americanos, mas com as implicações dos ataques e suas consequências para a vida cívica americana. E nesses domínios, encontramos prova inequívoca de mudança.

Os níveis de consciência política e engajamento são substancialmente mais elevados do que eram há um ano nos Estados Unidos. Na verdade, eles são provavelmente mais elevados agora do que foram pelo menos nas três últimas décadas. Confiança no governo e na polícia e interesse na política estão em alta. Em comparação com um ano atrás, os americanos estão um pouco mais propensos a participar de reuniões políticas ou a trabalhar em projetos comunitários. Por outro lado, estamos menos propensos a concordar que "as pessoas que dirigem minha comunidade realmente não se importam com o que eu penso". Sem dúvida, este é, em parte, o resultado de um surto de patriotismo e efeito da síndrome de "reverência à bandeira"[1] , mas também reflete uma apreciação mais ampla do papel das instituições públicas na abordagem não só do terrorismo, mas também de outras questões nacionais urgentes. O resultado? Uma explosão dramática e provavelmente sem precedentes de entusiasmo em relação ao governo federal.

Usando uma pergunta padrão ("Quanto você pode confiar no governo em Washington para fazer o que é certo, o tempo todo, na maioria das vezes, por algum tempo ou nenhuma parte do tempo?"), verificamos que 51 por cento dos nossos entrevistados expressaram maior confiança no governo federal em 2001, do que tinham feito no ano anterior. Sem dúvida, a identidade do comandante-em-chefe tem relação com o maior aumento da confiança entre os republicanos, os sulistas, e os brancos; mesmo antes do 11 de Setembro o advento de um governo republicano provavelmente já tinha mudado a polaridade partidária desta questão. Não obstante o bipartidarismo, o efeito nacional dos ataques terroristas e suas consequências é claro.

Embora tenhamos encontrado mudanças de atitudes cívicas de modo uniforme entre grupos étnicos, classes sociais e regiões, algumas mudanças foram registradas de forma mais acentuada entre os americanos mais jovens (35 anos ou menos) do que entre os mais velhos. Interesse em assuntos públicos, por exemplo, cresceu 27 por cento entre os jovens, em comparação com 8% entre os entrevistados mais velhos. Confiança nas "pessoas que dirigem sua comunidade" cresceu 19% entre os jovens, em comparação com 4% por cento entre os mais velhos.

Todavia, americanos de todas as fases de vida expressaram maior interesse nos assuntos públicos do que tinham feito durante a campanha política nacional de 2000. Este aumento na consciência política não tem, no entanto, levado a maioria dos americanos a se juntar e participar de organizações comunitárias ou para aparecer para as reuniões de clubes de encontro dos quais eles já tinham fugido. De um modo geral, as atitudes (como confiança e interesse) mudaram mais do que o comportamento. O comportamento seguirá as atitudes? É uma pergunta importante. Se a resposta for não, a floração da consciência cívica do 11 de setembro pode ser de curta duração.

Os americanos não só confiam mais nas instituições políticas: Também confiam mais uns nos outros, desde vizinhos e colegas de trabalho até vendedores de lojas e completos desconhecidos. Mais americanos agora expressam a confiança de que as pessoas em suas comunidades cooperariam, por exemplo, voluntariamente com medidas de conservação de energia ou pelo uso adequado de água. De fato, na esteira dos ataques terroristas, mais americanos relataram ter cooperado com os seus vizinhos para resolver problemas comuns. Menos de nós nos sentimos completamente isolados socialmente, no sentido de não ter a quem recorrer em uma crise pessoal. Ao mesmo tempo, estamos menos propensos a visitar mais amigos. Assistir televisão aumentou de 2,9 horas para 3,4 horas por dia. Nesse sentido, seja por medo ou por causa da recessão, os americanos estão mais enclausurados agora do que há um ano.


Nós ficamos especialmente surpresos e satisfeitos por encontrar evidências de maior confiança entre as divisões étnicas e outras. Brancos confiam mais em negros, asiáticos confiam mais em latinos, e assim por diante, mais do que essas mesmas pessoas faziam há um ano. Um padrão idêntico aparece em resposta a questões clássicas que medem a distância social: os americanos no outono de 2001 expressaram uma maior abertura mental para casamentos inter étnicos e raciais, mesmo dentro de suas próprias famílias, do que eles fizeram no ano anterior.

De fato,a confiança dos americanos em relação aos árabes é agora cerca de 10% abaixo do nível expresso em relação a outras minorias étnicas. Em anos anteriores, nós não tínhamos a necessidade de perguntar sobre a confiança em árabes-americanos, por isso não podemos ter certeza de que este dado diminuiu, mas parece provável que sim. Da mesma forma, verificamos que os americanos estão um pouco mais hostis em relação aos direitos dos imigrantes. Outras pesquisas têm mostrado que o ceticismo público sobre a imigração aumentou em 2001, mas essa tendência pode refletir a recessão, tanto quanto os ataques terroristas. No entanto, apesar dos sinais de apoio público para as técnicas de aplicação da lei antiterrorista que podem invadir as liberdades civis, a nossa pesquisa constatou que os americanos são, em alguns aspectos, mais tolerantes à diversidade cultural agora do que eram há um ano. A oposição à exclusão dos livros "impopulares" das bibliotecas públicas, na verdade passou de 64% para 71%. Em suma, com a importante, mas parcial e delimitada exceção de atitudes em relação a imigrantes e arábes-americanos, nossos resultados sugerem que os americanos sentem-se tanto mais unidos como mais confortáveis com a diversidade da nação.

Descobrimos também que os americanos tornaram-se um pouco mais generosos, embora as mudanças neste domínio são mais limitados do que os relatórios anedóticos sugeriram. Mais pessoas em 2001 do que em 2000, relataram que estão trabalhando em um projeto comunitário ou fizeram doação de dinheiro ou sangue. Voluntariado ocasional está ligeiramente mais alto , mas o voluntariado regular (pelo menos duas vezes por mês) permanece inalterado na proporção de um para cada sete americanos. Comparando com os dados imediatos à tragédia, nossos dados sugerem que a maior parte do aumento mensurável na generosidade ocorreu dentro de poucas semanas.

Quando 2001 terminou, os americanos estavam mais unidos, mais prontos para o sacrifício coletivo, e mais sintonizados com finalidades públicas do que temos sido por várias décadas. Na verdade, temos uma sensação mais ampla do "nós" maior do que tiveram na experiência adulta a maioria dos americanos que estão vivos. As imagens de sofrimento compartilhado que se seguiram aos ataques terroristas em Nova York e Washington sugeriram uma ideia poderosa de solidariedade inter classe e inter-étnica. Os americanos também foram confrontados com um claro inimigo externo, uma experiência que tanto nos aproximou quanto forneceu uma lógica para a ação pública.

No rescaldo da tragédia de setembro, uma janela de oportunidade se abriu para uma espécie de renovação cívica que ocorre apenas uma ou duas vezes por século. Ainda assim, apesar de a crise ter revelado e reabastecido os desejos de solidariedade nas comunidades americanas, esses desejos até agora permanecem inexplorados. Pelo menos, é isso que a distância entre as atitudes e o comportamento sugere. Solidariedade cívica é o que Albert Hirschman chamou de "recurso moral", distinto de recurso material, que aumenta com o uso e diminui com o desuso. Mudanças de atitude por si só, não importa o quão promissoras sejam, não constituem renovação cívica.

Americanos adultos que viveram um pouco antes e durante a Segunda Guerra Mundial foram duradouramente moldados por aquela crise. Em toda sua vida, essa geração votou mais, juntou-se mais e fez mais doações. Mas a chamada grande geração forjou não apenas disposição e símbolos, por mais importantes que eles tenham sido; mas também produziu grandes políticas nacionais e instituições (como o GI Bill) e práticas pessoais centradas na comunidade (como unidades de reciclagem e os jardins de vitória). Até agora, porém, o novo clima da América manifestou-se em grande parte por meio de próprias imagens dos ataques, por exemplo, na campanha "Eu sou um americano", que poderosamente retrata nossa sociedade e gestos multiculturais, como a visita do presidente a uma mesquita.

Imagens importam. Que poderosa lição de cidadania inclusiva teria sido transmitida se Franklin Delano Roosevelt tivesse visitado um santuário xintoísta em janeiro de 1942! Mas as imagens por si só não criam pontos de virada na história de uma nação. Isso exige mudança institucionalizada. Para ajudar a promover uma nova "grande geração," a administração Bush deveria endossar o projeto de lei oferecido pelos senadores John McCain e Evan Bayh para quintuplicar o financiamento destinado ao programa nacional de serviços da juventude do AmeriCorps. E dado que os jovens americanos estão mais abertas à participação política do que foram em muitos anos, os líderes educacionais e políticos deveriam aproveitar este momento para incentivar o envolvimento dos jovens em movimentos políticos e sociais. O movimento popular para restaurar a garantia da fidelidade nas salas de aula americanas defende um fino simbolismo, mas o momento é apropriado para também introduzir uma nova e mais ativista educação cívica em nossas escolas .

Finalmente, os ativistas devem reconhecer que a mobilização em tempo de guerra também pode desencadear o progresso para a justiça social e integração racial, tanto quanto as experiências da Segunda Guerra Mundial ajudaram a gerar o movimento dos direitos civis da década de 1950. Os Americanos hoje, nossas pesquisas sugerem, são mais abertos do que nunca para a ideia de que as pessoas de todas as origens devem ser membros plenos da nossa comunidade nacional. Os progressistas devem trabalhar para traduzir essa disposição nacional em iniciativas políticas concretas que criem pontes étnicas e entre divisões de classe em nossa sociedade cada vez mais multicultural.





[1] Tradução livre da expressão americana "rally round the flag" que implica em menor nível de critica às ações do presidente.

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