Augusto de Franco - 09/06/2004*
Tocqueville não escreveu um livro chamado "A Economia na América". Robert Putnam, que empreendeu, 140 anos depois, uma viagem tocquevilliana em sentido inverso - do novo para o velho mundo - não escreveu um livro chamado "Para que a economia funcione". Quando Tocqueville quis explicar a efervescência da sociedade americana em termos da sua predisposição para o desenvolvimento, cunhou a expressão 'governo civil', que se referia à capacidade daquela sociedade, em meados do século 19, pelo menos na Nova Inglaterra, de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. 'Governo civil' (e não 'empresa civil') é o antepassado em linha direta do conceito de capital social. Sim, o mesmo conceito que Putnam utilizou para explicar porque determinadas localidades italianas do Norte apresentavam prosperidade econômica e boa governança em contraste com outras localidades, do Sul, que não possuíam esses atributos do que chamamos de desenvolvimento.
O olhar de Tocqueville era político. Por isso, ele escreveu, na década de 1830, "A Democracia na América". O olhar de Putnam era político (ele é um cientista político, não um economista). Por isso, ele escreveu, em 1993, um "Para que a democracia funcione".
Jane Jacobs, no final da década de 1950, estava preocupada com um fenômeno que ocorria nas cidades americanas: algumas pareciam vivas, florescentes, enquanto que outras pareciam que estavam morrendo, fenecendo. Ela publicou um clássico, no início dos anos 60, intitulado "Morte e vida das grandes cidades americanas". Jacobs descobriu que nas cidades que estavam "vivas", sempre existiam, nos seus bairros e distritos, pessoas conectadas com pessoas segundo um padrão de rede, ocupadas com os assuntos públicos. Ela chamou essas redes de capital social. Ela responsabilizou esse capital social (e não o capital físico ou financeiro, o produto ou a renda; e não o capital empresarial, a riqueza) - uma externalidade, portanto, do ponto de vista do pensamento econômico - pela vitalidade das localidades americanas em termos de desenvolvimento. Jacobs foi a primeira pessoa que empregou a expressão capital social com o sentido com que a empregamos hoje, com o sentido com que Putnam empregou o termo, com o sentido com que Tocqueville cunhou a expressão governo civil.
Todas essas pessoas - Tocqueville, Jacobs e Putnam - estavam falando de desenvolvimento e estavam falando de sociedade. Estavam estabelecendo um nexo conotativo entre desenvolvimento e sociedade civil. Estavam vislumbrando uma relação intrínseca entre desenvolvimento e o modo como a sociedade se estrutura e regula seus conflitos. Estavam dizendo que desenvolvimento, ao contrário do que pensam muitos policymakers e estrategistas cujas consciências foram colonizadas pelos economistas, tem, sim, a ver e muito a ver, com rede e com democracia.
Alguns ficam surpresos com o fato de sociedades hierárquicas e autocráticas, como a China atual ou como o Brasil dos tempos da ditadura militar, terem produzido um "milagre" em termos de crescimento econômico. Mas não deveria haver tanta surpresa. É possível ir a China e escrever um livro chamado "A Economia na China", mas esse livro não poderá ter uma inspiração tocquevilliana (por motivos óbvios não é possível escrever um “A Democracia na China”). É possível estudar a China e escrever um livro chamado "Para que a economia funcione", mas esse livro não terá nada do enfoque de Robert Putnam (estudando a China, por mais que nos esforcemos, não conseguiremos escrever um “Para que a democracia funcione”). É possível explicar por que uma Xiang-Tsé (imaginária) pareça viva enquanto que uma Xing-Po (também imaginária) pareça morta, mas essa explicação será totalmente diferente daquela que foi elaborada por Jane Jacobs. O florescente capitalismo chinês não tem a ver com a dinâmica de suas redes sociais. Por quê? Simplesmente porque aqui estamos falando de crescimento e não de desenvolvimento.
Por isso não deveria haver tanta surpresa. Tocqueville, Jacobs, Putnam e os teóricos do capital social que proliferaram a partir da década de 1990, estavam e estão, sim, falando de desenvolvimento, inclusive de desenvolvimento econômico, mas não estavam nem estão falando de crescimento; ou melhor, não estavam e não estão possuídos pelo mito de que crescimento gera automaticamente desenvolvimento.
A China vem sendo considerada pelo governo Lula uma maravilha em termos econômicos. Mas sua posição no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, que mede o capital humano) é muito pior do que a do Brasil (que, por sua vez, já é péssima). Se houvesse um ranking de IDS (um Índice de Desenvolvimento Social, que medisse o capital social), Deus a livre! O lugar da China seria lá no final da lista.
A China está crescendo, sim. Mas nós também crescemos na década de 1970. Crescemos como? Crescemos como a China está crescendo: concentrando renda, riqueza, conhecimento, poder e não nos preocupando muito com o meio ambiente.
Não é muito difícil produzir esse tipo de milagre quando se escolhe 15% da população para prosperar. Ou melhor, quando se decreta que 85% da população não vão prosperar. Um mercado de bens duráveis para a minoria próspera vai, certamente, prosperar. Os resultados da convivência dessas duas economias nós já conhecemos.
* Reprodução da Carta Rede Social 62 (Antiga Carta Dlis publicada originalmente por Augusto de Franco) Outros artigos do autor podem ser encontradas em http://augustodefranco.locaweb.com.br/index.php
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